terça-feira, 11 de agosto de 2015

Cavaleiro de sonhos

O velho apeou do cavalo, chegou no balcão com seus trajes simples, pediu uma catuaba e um quarto de pinga, fez cara feia engolindo o liquido que lhe ardia a garganta.
Pegou o embornal e foi à feira comprar algumas coisinhas para levar pra roça.
Com a voz rouca e um português precário,pediu mais um quarto de cachaça. Novamente engoliu e saiu. Pouco tempo depois voltou mais bêbado do que antes.
Ainda tinha muito chão para percorrer em cima do lombo o animal. Bem capaz que só ia chegar em casa tarde noite.

Dentro da camisa de tergal ele usava um colar de lágrimas de Nossa Senhora e um de contas e miçangas nas cores vermelha, branca e preta.
Enfiou a mão dentro da camisa segurou firme nas guias, olhou para o alto, provavelmente para o céu e disse: - Esse aqui não me deixa só, com isso aqui estou protegido.
Mas o velho estava mesmo é com muito medo, já que há pouco tempo um de seus amigos foi morto, tocaiado com três tiros na costas, por causa de dívidas de jogo, de terras e talvez de mulher.
Falou do medo, mas da proteção divina e da fé em Deus. Falou das romarias que meu pai fazia para Bom Jesus da Lapa. Lembrou dos tempos difíceis e da fome que assolava neste Vale tão esquecido.Disse também que há muito não via os filhos,que tiveram de ir para São Paulo, para o Paraná e Mato Grosso em busca de trabalho.- Tá tudo ai espalhado por esse mundo a fora.
Pediu mais um quarto de pinga e eu já nem conseguia saber o que o velho falava, ou contava.
Se tinha algum dente na boca eu não vi, e puxava a fumaça do cigarro de palha que acabara de fazer com o fumo de rolo que guardava no meio das tralhas que carregava.
Bem, com certeza o animal conhecia o caminho de sua casa , pois o sujeito não tinha mais condições de guiar e nem sequer ficar sentado na cela.
Pegou o alforje e saiu cambaleando, até que depois de muitas tentativas subiu no cavalo.
E lá se foi estrada a fora o velho, cheio de sonhos, de dor, de fé, de medo, de tristezas vivendo simplesmente a vida, essa vida tipicamente vivida no Vale do Jequitinhonha.
(Deyse Magalhães-Janeiro/2015)

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A Dança das Andorinhas


Viajei ao passado bati as asas da saudade.
Percorri o céu nas manhãs em minha cidade.
Por que as andorinhas não voltaram neste verão?
Tempo em que acordávamos cedo para ir à escola e lá estavam os fios, cheio de andorinhas. A criançada batia palmas e elas saiam voando, espantadas procurando novos fios, novos galhos.
Foi-se o tempo em que as andorinhas davam o ar da graça enfeitando as ruas da cidade. Alegrias para as crianças, para os jovens e os idosos...
A avenida ficava linda! Parecia pintura! Uma verdadeira obra de arte da natureza.
Por muitos anos moradores ficavam olhando para cima, o céu virava palco para contemplar a dança dessas aves, numa coreografia magnifica, fazendo altos voos e acrobacias no infinito.
A liberdade me encanta e encantam os olhos de quem há alguns anos assistiu a esse espetáculo numa cidade sem pressa.
Andorinhas tão cantadas em versos e canções.
E quando elas iam embora eu perguntava: “Pra onde vão as andorinhas?”
Elas vão para outros lugares, mas logo voltam na próxima estação.
Mas elas não voltaram mais!
O homem chegou desmatou a natureza, os bichos fugiram, outros morreram os rios secaram.
É bem capaz que as andorinhas foram fazer novos verões em outras terras, em outros continentes.
(Deyse Magalhães junho/2015)

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Romarias

O caminhão de meu pai, Dário Magalhães subia o Morro da Contagem numa madrugada fria do mês de maio. Carregava os romeiros no Pau de Arara para irem a Aparecida do Norte pagar suas promessas e pedir à  Santa a proteção necessária para aliviar as dores do dia a dia.
          As mulheres com lenços amarrados debaixo do pescoço , os homens com chapéus e cigarro de palha queimando entre os poucos dentes que lhes restavam na boca, soltavam foguetes ao passarem pela ponte do Rio Fanado ,  cantando em meio à estrada de terra que trepidava, causando um enorme desconforto numa viagem de mais de 1500 km, sentados em bancos de madeira, sem encosto, apenas com uma lona para se protegerem do sol, do frio e da chuva, acaso chovesse. Era o único meio de transporte coletivo de passageiros da época.
          Mas a fé movia Maria. Maria que juntava dinheiro o ano todo pra comprar um colar, ou uma pulseira de ouro para ofertar à Santa em gratidão às bênçãos alcançadas.
- Nossa Senhora Aparecida há de ajudar! Levarei o cordão de ouro para ela e, se Deus quiser, voltarei ano que vem para agradecer os milagres, pensava.
         Maria era uma pessoa simples, morava em casa humilde, não tinha luxo, como muitos brasileiros, mas a vida dura do Jequitinhonha ainda era pior. O pouco dinheiro que recebia, comprava umas coisinhas aqui outras ali. Desta vez mandara o melhor ourives da cidade fazer uma correntinha de ouro e caprichar nos detalhes.
         "É para a Santa"! Dizia com orgulho e feliz. Pegando o adereço entre as mãos o apertava no peito, levantando o olhar mágico sobre o cordão de ouro.
         O ronco do caminhão ganhava a estrada de terra e a cidade ia ficando para trás, sumindo no meio da poeira vermelha.
        Na sacola os romeiros levavam farofa, biscoitos de goma, bolo, café, paçoca de carne de sol, água, groselha para matar a fome e a sede durante a viagem.
        Já pegando a estrada definitiva que parecia não ter fim, os romeiros continuavam a cantoria alternando entre rezas e ladainhas para seguirem viagem.
      A cachaça aliviava o cansaço, dava alegria e a ilusão de um caminho menos dolorido.        
     Era o tempo da fé inabalável, da fé inquestionável. Mas ainda tinha muito chão a ser percorrido até o Santuário.
     Ao avistar o Rio Paraíba do Sul, a cantoria aumentava ainda mais com fervor e os romeiros não viam a hora de se ajoelharem aos pés da Santa e com os olhos marejados, agradecerem a nossa Mãe Rainha Poderosa Padroeira do Brasil! 

(NOTA: O Pau de Arara era o único transporte coletivo da época e depois foi proibido, mas essa antiga prática continua sendo exercida no Brasil, principalmente nas regiões pobres do nordeste, em romarias e nas lavouras.)
 

terça-feira, 2 de junho de 2015

A casa de Cora Coralina

Quando entrei na casa de Cora Coralina em Goiás Velho senti muito mais do que a poesia flutuar.  Entrei e meus olhos brilharam de emoção. Tudo naquela casa lembrava as casas de minha cidade. A sala, os quartos, os móveis, o fogão a lenha e até o fogão antigo a gás. O assoalho barulhento de madeira maciça nos aposentos e o chão de tijolo na cozinha. O porão. As janelas com taramelas e porta com chaves de ferro. O enorme quintal cheio de frutas, plantas, chás, flores. Lembrei-me dos quintais da casa de “Duviges”, de “dona Idália”, de “dona Alvacira”, de “dona Auta” e muitos outros. Um verdadeiro pomar e jardim em pleno centro da cidade. Tinha cheiro de jasmim!
Aliás, a cidade de Goiás Velho lembra-me muito Minas Novas.
 Quem disse que não é possível voltar ao tempo, errou. Eu entrei na poesia de Cora Coralina. Li frase por frase, rima por rima, letra por letra.
Uma figura a qual me chamou atenção na história da cidade foi a lendária Maria “Grampim”. Maria Grampinho era uma louca, negra, andarilha que, durante o dia, perambulava pelas ruas e pelos becos da Cidade de Goiás. Apelido este por causa de seus mais de cem grampos no cabelo e inúmeros botões pregados nas várias saias, e sua enorme trouxa na cabeça. Ela alimentava e dormia no porão da casa da poetisa Cora Coralina que a considerava como sua amiga. E como toda cidade tem seus personagens folclóricos que se destaca entre os demais, essa personagem lembrou-me bem a nossa também lendária Rita “ Pezim”.
O mais interessante de tudo isso, é que as escolas procuram uma maneira de preservar a cultura, conhecendo a vida de seus personagens, não apenas os ilustres, mas também as pessoas simples, frágeis e tudo que compõe o conteúdo histórico da cidade.
Por onde ando carrego minha cidade na bagagem!
(Deyse Magalhães marco/2015)

 

sábado, 30 de maio de 2015

Pra que rimar amor e dor


PRA QUE RIMAR AMOR E DOR

Essa foto foi feita na década de 70 no Festival da Canção em Minas Novas. 

Da esquerda para a direita estão Carlos Mota, Fifi Ferreira (in memorian), Volks e Dalton Magalhães. Esses rapazes tinham entre 18 a 20 anos de idade, quando Dalton e Carlos concorreram com a música “Mora na Filosofia” um clássico da MPB, que tem como carro chefe o verso: “Mora na filosofia pra que rimar amor e dor”.
Irreverência, ousadia faziam parte da juventude minasnovense que sempre esteve à frente de seu tempo. 
A efervescência da Música Popular Brasileira, como a Tropicália, Bossa Nova, Rock’roll influenciava a juventude de todo país. Esses festivais eram realizados principalmente na cidade de São Paulo, sendo transmitidos para várias regiões do Brasil, e nossa cidade também recebeu a influência desse momento cultural, tendo grandes músicos, interpretes compositores e artistas de expressiva sensibilidade nas diversas vertentes do mundo das artes.
(Deyse Magalhães em Memórias de Minas Novas-MG)

A Rua São José


A pacata Rua São José guardava a tranquilidade daquele lugar.
“Correria”,falta de tempo”,” estresse” ,“pressa”, expressões que não se conjugavam nas ruas calmas da velha Minas Novas.
Lembro-me bem!
Depois de passar o dia inteiro no Rio Fanado, e subir a Rua da Ponte e ver as pessoas sentadas nas calçadas, ao entardecer, coisas charmosas que guardo em minhas lembranças.
Maria Lopes, Dona Auta e Vanda todas essas já partiram para outro plano, deixando a Rua São José para outras gerações. Talvez uma geração que não se senta mais na beira da calçada,que não tenham tanta serenidade e calmaria, que não se contentam em ficar em silencio quando lhes faltam assunto. Tem a preciosidade do silêncio como companhia.
Um costume admirável não só para preservar as histórias do lugar, mas também para diminuir a rotina e arejar a cabeça da labuta do dia a dia ou para pegar a brisa, que alivia o calor típico da região.
Era muito comum e ainda é, diga-se de passagem, observarmos essa prática ao cair da tarde, entrando pela noite, em pequenas cidades iguais a nossa.
A vida sem pressa muito me agrada!

(Deyse Magalhães em Memórias de Minas Novas/maio/2015)

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Olha a lenha!

Olha a lenha! Olha a lenha!
A outra perguntou: - É pra forno ou pra fogão!?
Essa mulher levanta antes do sol sair, pega um facão, um machado e entra no mato adentro mal alimentada, geralmente descalça cortando galhos secos para formar seu feixe e a tarde vai vender por um preço que mal dá para comprar o essencial.
Vez ou outra eu me dou ao luxo de ficar matutando sobre o tempo que passou.
Vôos longos de volta ao passado nas asas mágicas da saudade. Vou revivendo as cenas que adornaram minha infância e ficaram para sempre na lembrança. Caminho pela minha cidade de anos atrás. Minas Novas carregada no meu peito.
Hoje, não sei porquê, lembrei dos dias distantes dos fogões à lenha.
Puxa vida, nos tempos do fogão à lenha a vida era bem mais difícil para as donas de casa.
Enquanto a senhora me oferecia a lenha para comprar,eu ficava passeando em seu pensamento ouvindo dizer coisas sem sentido, pelo menos no que me refiro ao sentido, mas em se tratando de mato, ela tinha firmeza de contar o que acontece neste trabalho árduo.
Vá lenhadora, vá cortar as árvores enquanto elas existirem. Angelim, jatobá, buriti, angico e gabiroba. Enquanto as serras, as máquinas não derrubarem nossas florestas. Nossos pequizeiros e mangabeiras. Vá lenhadora e cuide da natureza enquanto há tempo, enquanto ainda existirem fios d'água nos rios, enquanto tem flora e fauna, enquanto o eucalipto não leva sua fonte de renda. Enquanto ainda se ouve o canto misterioso dos juritis e de tantas outras aves que nem me lembro mais o nome.
Vá sobrevivendo ao medo, aos pés rachados, ao calor do sertão para ganhar o pão de cada dia de quem vive neste Vale do Jequitinhonha.

(Deyse Magalhães - Janeiro/2015)

As Coroações


O mês de maio me transporta aos tempos de menina e às lembranças das coroações de Nossa Senhora no mês de Maria. Cada mãe produzindo suas filhas com os vestidos e as asas de anjos, cumprindo o ritual da fé.
Durante dias, costurando na máquina, que ficava no quarto da sala, meu vestido de anjo era todo feito pelas mãos de minha mãe. O vestido, na verdade, era uma túnica azul-petróleo amarrado com um cordão de São Francisco. Eu tinha uns 12 anos e usava uma enorme asa de anjo de penas de cisne, que meu pai trouxe de Belo Horizonte, e uma sandália franciscana que compunha o figurino.
Meu pai comprava tudo nos armarinhos dos turcos na Rua Caetés. Era o Centro de Compras. Devido a pouca variedade de opções no comercio local, a cidade toda fazia encomendas e ele acabou criando fortes laços de amizades com os comerciantes do centro de BH, inclusive meu padrinho de batismo era um desses turcos, o nome dele era Fuad, que na verdade mandou seu filho Chaffi substitui-lo e pra dizer a verdade tenho somente vagas lembranças dele, nunca mais o vi.
Recordo da minha mãe passando rouge e batom em mim, enquanto sussurrava nos meus ouvidos os conselhos de sempre, antes do evento: Serenidade sempre, minha filha! E nunca cante de cara fechada! (Dizia.... um sorriso maroto no canto da boca...)
Com a inocência nos olhos, a música e o texto na ponta da língua e uma rosa na mão, subi a rua do mercado, com o coração de menina saltando pra fora do peito, passando pela pracinha do Ó, pelo Beco de Luiz Leite, até o Largo de São Francisco.
A igreja estava toda iluminada e Dona Maria Geralda Coelho nos aguardava com carinho e eu subi lá no alto do altar juntamente com outros anjos, vestidos de rosa, branco, verde, amarelo. Eu estava corada, não sei se pelo rouge ou de vergonha. Era tudo lindo! Luzes que pareciam estrelas, anjos, gente, os repiques dos sinos penetrando nos portais, barraquinhas, fogos que coloriam o céu, padre, sacristão, a lua clara no céu como seda branca e banda de música! 
Eu vi as noites frias de maio passear sobre minhas lembranças!

(Deyse Magalhães maio/2015)


Margarida

   
Divertida e espontânea, Margarida mora num vale, no Vale do Jequitinhonha. Jequitinhonha significa na língua indígena “Rio Largo cheio de Peixe”, cujo rio traça o perfil do mapa de Minas. O rio traça seu caminho, na correnteza da água, esse rio carrega um mar de gente. Gente simples que ama sua terra, onde quer que esteja voa pelo mundo, mas tem raízes plantadas no chão árido do Jequitinhonha. Esse rio traz diamantes, faz garimpeiros, tropeiros e caboclos. Esse vale faz cantador, congadeiro, traz goles de cachaça, alegria, santos negros, folclore, chapadas, traz artesãos, teares, barro moldado, muita quitanda, muita folia e procissão. Nesse vale vive essa figura, Deyse Magalhães, a Margarida, ariana brava, que passa entre pontes e ruas, entre pedras e rios.
Conselheira, agitada. Morena com cabelos ondulados grandes e volumosos, saia rodada, pernas grossas vai para o rio se inspirar, tira dele a energia que lhe alimenta. Os becos e as ruas tortas nos levam a viajar ao passado. Margarida nos conta como é aproveitar a vida, passado e presente se misturam. Quando quer viajar aos momentos de menina é só fechar os olhos para ver a banda passar, pular atrás do trio elétrico, comer doce na Festa do Rosário, coroar os reis da festa, participar das rodas de viola, banho no Fanado, comer acarajé de milho verde, galinhada na beira do rio, ouvir os músicos, poetas, atores, lendas e “causos”. Causos vindos de Margarida são debochados e a sua marca é a risada alta e cativante. Transforma palavras em magia, nos proporcionando idas e vindas na cidade desde saudades e as lembranças, até a nossa realidade. 
 (Texto de Flávia Marques)


terça-feira, 19 de maio de 2015

Brinco de capim dourado

Eu estava brincando, sim brinquei com o brinco de capim dourado.Olhei bem, observei e não vi capim nenhum naquele momento eu que eu ganhara a bijuteria.O presente foi confeccionado artesanalmente e veio de longe. Toquei-lhe os dedos procurando desvendar onde estava a matéria prima que nomeava o artesanato.Vi um metal dourado, que só mais tarde na luz do dia olhando fixamente sem pressa, pude ver a veracidade da peça.E como a vida nos prega muitas surpresas, vejo que muitas vezes sendo verdadeiros em nossas ações, sempre haverá alguém para nos enxergar de forma artificial, onde  nossa impressão perante o outro pode ter sentido contrário ao do bem. Prefiro o capim dourado rodeado de metal e sutilmente visto aos olhares ligeiros. Deixo me encobrir pelos apressados e para aqueles que não conseguem sentir que o tempo não é quantidade e sim qualidade.
Eu não consigo entender por que as pessoas têm pressa de viver, pressa de realizações...Pessoas  assim nunca vão conseguir ver o capim dourado e sempre vão achar que foi enganado pelo vendedor.

(Deyse Magalhães)